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  • Foto do escritorSuely Romero Hauser

O ato falho de Van Gogh

Van Gogh, ou melhor, Vincent Willem van Gogh foi um pintor holandês considerado uma das figuras mais famosas e influentes da história da arte ocidental. Em pouco mais de uma década, ele criou mais de dois mil trabalhos, incluindo, por volta de 860 pinturas a óleo, a maioria delas feitas durante seus dois últimos anos de vida. Um artista. Um talento. Além das obras, muitas frases são atribuídas a ele e demonstram como tinha uma alma sensível, característica de um grande homem que deve ter sido. Quando sinto uma terrível necessidade de religião, saio à noite para pintar as estrelas”, uma frase deixada por ele nos revela a necessidade de sair para exprimir sua arte. Olhar para o céu e ir ao encontro das estrelas para se achar. A religião de um artista, muitas vezes, está nas obras que faz. Para entender um artista é preciso não vê-lo como pessoa comum. O ser humano é falho, mas o artista não. Não existem erros na arte, nas obras produzidas por ele. A expressão mais íntima de um talento dar-se-à pelo que o mestre propõe. Acredito que, nessa perspectiva, Van Gogh foi um incompreendido. A obra Noite Estrelada, de 1889, considerada de memória, retrata a vista da janela de um quarto do hospício de Saint-Rémy-de-Provence, pouco antes do nascer do sol, com a adição de um vilarejo idealizado pelo artista. Ele a pintou quando já não estava mais no local, mas registrara em sua mente (e coração) as imagens. A tela, que hoje faz parte da coleção permanente do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque desde 1941, é considerada uma das mais famosas pinturas de Van Gogh o qual entrou para a história como um louco, um demente cuja saúde mental estava comprometida. Outro fato interessante em sua biografia foi o episódio trágico da automutilação da orelha esquerda em 23 de dezembro de 1888. Voluntariamente, Van Gogh internou-se no asilo psiquiátrico sediado num antigo mosteiro que atendia pessoas de famílias abastadas, mas abrigava menos da metade de sua capacidade. Por isso, a permanência dele nesse local permitiu que vivesse sozinho numa cela do segundo andar e tivesse à sua disposição um estúdio de pintura onde podia expressar sua arte. Um privilégio para um pintor, uma prisão para um louco. A noite era um tema recorrente na obra e exercia um verdadeiro fascínio sobre o gênio. Uma frase dele revela essa intensidade. “Muitas vezes, eu penso que a noite tem mais vigor e é mais intensamente colorida do que o dia.”(Vincent van Gogh). Um notívago. Também é desse período o autorretrato que fez depois de ter cortado parte da orelha, após uma suposta briga com Paul Gauguin, também pintor, com quem tivera um relacionamento polêmico e conturbado. Mas isso não vem ao caso. Os motivos que levaram ao ato insano são desconhecidos e pouco interessantes para justificar os danos. A automutilação da orelha pode ser considerado um ato falho na vida de Van Gogh, algo que ele tentou se redimir com a internação voluntária. Mas esse incidente ganhou notoriedade maior do que a obra deixada por ele. Após a alta que recebeu do hospício em 06 de janeiro de 1889, ele fez esse autorretrato onde se percebe a fragilidade da sua saúde física. Mais do que isso. Ele tinha consciência do que havia feito e essa autoimagem de alguma forma lhe era importante. Essa tela também ganhou fama entre os leigos e interessados em arte. Mas, existiram outros autorretratos que ele pintou durante suas inúmeras internações em asilos psiquiátricos. Uma vida inteira de perturbações, alucinações e delírios que atormentaram a alma de Van Gogh. Penso que não se pode medir a grandiosidade desse mestre por esses fatos embora sejam reais e tristes. O artista era grande, mas sua vida era pequena. Uma alma grandiosa demais para um mundo tão restrito. A vida lhe oferecera tão pouco diante de sua arte. O ato falho de Van Gogh que o tornou famoso revela que as pessoas costumam ser marcadas por seus erros e não pelos seus acertos. Sigmund Freud descreveu o fenômeno em seu livro A psicopatologia da vida cotidiana, de 1901, denominando-o Fehlleistung em língua alemã, como um desejo do inconsciente quando realizado. Um gesto, um pensamento ou palavra que acontece acidentalmente e não pode ser julgado como um erro comum. Para a psicanálise, os atos falhos evidenciam um sintoma, constituição de compromisso entre o intuito consciente da pessoa e o reprimido. Esse conceito parece explicar bem os atos falhos de Van Gogh. Uma alma reprimida, uma arte incompreendida, visto que morreu como um pintor desconhecido, melancólico e pobre. Nada do seu talento e obra foi revertido em riqueza material que ele pudesse se apropriar. Viveu na miséria material, mas na abundância artística, pois entrou para a história da arte como um grande nome e influenciador. Os atos falhos de Van Gogh expressam a forma como a sociedade incide sobre quem erra. Um dedo em riste, uma inquisidora permanente. Não é permitido errar. O erro não cai bem, revela a fragilidade humana. Uma pessoa que sempre faz tudo certo e bem, quando comete uma falha, é quase sempre hostilizada. O erro é visto como algo muito ruim, um ponto fraco de alguém que, geralmente, mostra-se forte para os outros, mesmo sabendo que não o é. E penso nessa metáfora de Van Gogh como um ponto de reflexão. Mais importante do que os infortúnios da vida desse grande pintor, valem a maestria, a arte, os acertos, o que ele fez de bom e o legado que ofereceu ao mundo. Ele não era os erros dele, a orelha cortada. Ele se sobrepunha a toda essa loucura que decerto ele viveu. Um tormento que lhe permitia momentos de lucidez em que sua alma podia ver a noite, as estrelas, os campos, as pessoas que ele pintou e que faziam parte de sua vida. Os girassóis (1889), O quarto de Arles (1888), Os campos de trigos com corvos (1890), Os lírios (1889), A casa amarela (1888), O carteiro Joseph Roulim (1888), La Mousmé (1888) e tantas obras famosas que revelam que ele tinha a percepção do mundo ao seu redor e apreço pelas pessoas que faziam parte do seu mundo. Sua loucura não era total e nem todo dia. Ele cometeu os atos falhos como todo mundo. Ninguém é perfeito o tempo todo mesmo que queira. As falhas fazem parte da natureza humana tanto quanto os acertos, as vitórias, as conquistas. Uma pena que o mundo insista em dar holofote para as orelhas cortadas de Van Gogh.


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